altas celestiais.
Usualmente, temos a fixação mental de que o que está por vir é novo e surpreendente. É um dos momentos em que a natureza permite que estejamos certos, e nos gabemos por pensar naquele tal polegar opositor, que é por causa dele que somos assim tão videntes do óbvio em qualquer linha do tempo, de qualquer dos mundos paralelos que possam coexistir.
Comecei meu estágio na enfermaria de cardiologia e não estava das mais empolgadas. Não, não houve um plot twist e agora eu adoro essa especialidade, longe disso (porém hoje a compreendo, essa é a novidade). Mas eu tive a chance de ser reconhecida como a interna que dá altas. Estive responsável pelo cuidado de três pacientes crônicos, com mais de 2 meses de internação. De alguma forma, consegui mandar dois deles para o conforto dos seus respectivos lares. De certa forma, saudáveis. Definitivamente, felizes.
Comecei meu estágio na enfermaria de cardiologia e não estava das mais empolgadas. Não, não houve um plot twist e agora eu adoro essa especialidade, longe disso (porém hoje a compreendo, essa é a novidade). Mas eu tive a chance de ser reconhecida como a interna que dá altas. Estive responsável pelo cuidado de três pacientes crônicos, com mais de 2 meses de internação. De alguma forma, consegui mandar dois deles para o conforto dos seus respectivos lares. De certa forma, saudáveis. Definitivamente, felizes.
Estar internado pode parecer um cárcere privado, onde te dão alimentos e permitem que você se comporte como ser humano, vez ou outra. Pode ser que hoje te deixem andar até o outro andar; opa, não, por aqui não, é outra ala do hospital. Você cruza com outros prisioneiros no corredor. Isso quando você pode andar. Pessoas com roupas padronizadas entram e saem do seu cativeiro, e é difícil lembrar seus nomes ou seus rostos, afinal, são trocentas pessoas, cada uma fazendo uma pergunta íntima a respeito do meu ser e da minha existência visível e invisível.
Dormiu bem? Teve falta de ar? O que sentiu quando caminhou até a sala de TV? Comeu hoje? O que comeu? Teve náuseas ou sensação de queimação depois de se alimentar? Foi ao banheiro? Fez xixi? Muito ou pouco? E como tá o cocô? Que cor? Tá meio pastoso ou tá durinho? Doeu? E a cabeça? Teve dor no peito? Quem é esse acompanhante novo? Tá calor hoje, né?
Apesar disso tudo, fui recebida bem. Não no começo, claro, quando recebi as boas-vindas com respostas curtas, monossilábicas e com um tom ríspido dos dois pacientes que habitavam aquela enfermaria. Um deles estava chateado pelo rozídio, e sentia falta da interna anterior; ficou frustrado porque era eu, e não ela, e quem raios eu era? Além de que não podia ver meu rosto, pois estava em isolamento e eu tive que usar máscara por um semana enquanto o avaliava. O outro paciente era, na verdade, Kimiko, uma descendente de japoneses que tinha correndo no sangue a objetividade. Aos poucos fui conquistando espaço. Tive certeza disso quando dona Kimiko pediu para Paulo, seu irmão que a acompanhava, buscar no armário "a fotografia". Ele passou para suas mãos, que me repassaram. Era uma fotografia em tons de cinza, onde havia a porta de um avião pequeno a médio sendo plano de fundo para 3 pessoas no centro da foto: uma delas, no canto direito, uma moça de cabelo escuro e curto, vestindo terninho de cor clara, ao lado de um comandante (ou seria capitão?) que, por sua vez, tinha ao seu lado um homem de terno. Havia algumas pessoas ao redor, nas beiradas da foto. E havia uma caixa de isopor em algum lugar. Tinha lágrimas se juntando nos olhinhos pequenos da dona Kimiko, que tinha um edema de face pelo uso de glicocorticoides e tinha a abertura ocular ainda mais restrita do que sua etnia lhe submeteu. Então Paulo me explicou: Kimiko foi a comissária de bordo da Varig, antiga empresa brasileira de aviação, no voo que trouxe ao Brasil os medicamentos usados no primeiro transplante cardíaco em terras tupiniquins, que foi feito pelo médico Euryclides Zerbini, em 1968. Ela estava radiante, obviamente, e estava emocionada em relembrar. E também estava um pouco emocionalmente abalada devido a todo o contexto da internação, mas isso não vem ao caso. Paulo me disse que ela estava me esperando, ansiosa para me mostrar a tal fotografia. Fiquei muito emocionada e um pouco desconcertada, sem saber o que dizer com aquela pessoinha de 75 anos chorando na minha frente me mostrando um dos grandes feitos da sua vida. Me agradeceu com um único "muito obrigada por tudo, viu?" e um bocado de choro. Abracei-a de um jeito desajeitado. Ela havia passado a noite emocionada com a perspectiva de alta. Liberdade do cativeiro! Finalmente voltar pra casa pra comer o bife de fígado que os sobrinhos faziam tão bem e que ela não sabia temperar do mesmo jeito. Comeu muito, dona Kimiko? "Vixi!".
Apesar disso tudo, fui recebida bem. Não no começo, claro, quando recebi as boas-vindas com respostas curtas, monossilábicas e com um tom ríspido dos dois pacientes que habitavam aquela enfermaria. Um deles estava chateado pelo rozídio, e sentia falta da interna anterior; ficou frustrado porque era eu, e não ela, e quem raios eu era? Além de que não podia ver meu rosto, pois estava em isolamento e eu tive que usar máscara por um semana enquanto o avaliava. O outro paciente era, na verdade, Kimiko, uma descendente de japoneses que tinha correndo no sangue a objetividade. Aos poucos fui conquistando espaço. Tive certeza disso quando dona Kimiko pediu para Paulo, seu irmão que a acompanhava, buscar no armário "a fotografia". Ele passou para suas mãos, que me repassaram. Era uma fotografia em tons de cinza, onde havia a porta de um avião pequeno a médio sendo plano de fundo para 3 pessoas no centro da foto: uma delas, no canto direito, uma moça de cabelo escuro e curto, vestindo terninho de cor clara, ao lado de um comandante (ou seria capitão?) que, por sua vez, tinha ao seu lado um homem de terno. Havia algumas pessoas ao redor, nas beiradas da foto. E havia uma caixa de isopor em algum lugar. Tinha lágrimas se juntando nos olhinhos pequenos da dona Kimiko, que tinha um edema de face pelo uso de glicocorticoides e tinha a abertura ocular ainda mais restrita do que sua etnia lhe submeteu. Então Paulo me explicou: Kimiko foi a comissária de bordo da Varig, antiga empresa brasileira de aviação, no voo que trouxe ao Brasil os medicamentos usados no primeiro transplante cardíaco em terras tupiniquins, que foi feito pelo médico Euryclides Zerbini, em 1968. Ela estava radiante, obviamente, e estava emocionada em relembrar. E também estava um pouco emocionalmente abalada devido a todo o contexto da internação, mas isso não vem ao caso. Paulo me disse que ela estava me esperando, ansiosa para me mostrar a tal fotografia. Fiquei muito emocionada e um pouco desconcertada, sem saber o que dizer com aquela pessoinha de 75 anos chorando na minha frente me mostrando um dos grandes feitos da sua vida. Me agradeceu com um único "muito obrigada por tudo, viu?" e um bocado de choro. Abracei-a de um jeito desajeitado. Ela havia passado a noite emocionada com a perspectiva de alta. Liberdade do cativeiro! Finalmente voltar pra casa pra comer o bife de fígado que os sobrinhos faziam tão bem e que ela não sabia temperar do mesmo jeito. Comeu muito, dona Kimiko? "Vixi!".
Espedito, o segundo paciente, pode ser descrito como emocionalmente carente. Suas queixas eram ouvidas pelos médicos como reclamações vagas e múltiplas, que não poderiam ser solucionadas; porém eu insistia em repassar, pois quem sou eu pra saber o que é válido e tratável ou não? Havia dias em que tudo pra ele estava ruim. A perna voltava a doer, sentia fraqueza ao andar, o peito doía mais quando ele tossia. No dia seguinte, como se tivesse tomado uma pílula mágica - que não receitamos literalmente -, estava ótimo, feliz, sem um sintoma sequer; a dor, de caráter crônico, nem era mais sentida; a dor no peito, antes tão forte, parecia nada agora. E era assim, numa montanha russa de intensidades de dores, que seu Espedito foi melhorando e se afeiçoando. Quando mudou o rodízio dos residentes, o Dr. Alexandre foi visitá-lo e se apresentou-se "Eu é quem cuidarei do senhor agora, viu? Está sob meus cuidados."; Espedito fez cara feia, fechou-se e resmungou pra esposa: "Será que tiraram a Letícia de mim e não me avisaram?". Me contou com um quê de contrariação no dia seguinte a esse evento, e me acabei de rir com ele. Sentia que tinha dias em que ele melhorava depois que eu o avaliava. Talvez eu fosse o vislumbre de um retorno pra casa tão aguardado, por vezes já desacreditado. Eu falava da alta hospitalar e ele nem esboçava um sorriso mais, tamanha era a lacuna da esperança que já tinha partido, talvez devido aos inúmeros antibióticos. Quando uma nesguinha de esperança voltou, ao sair do isolamento, colocaram um paciente ao seu lado, no mesmo quarto, que faleceu uma noite após chegar. Seu Manuel, morreu de choque séptico. Eu assustada, receosa pelo Espedito, que tinha a imunidade rebaixada, e surpreendida pela morte de um paciente que eu havia avaliado no dia anterior e que estava bem. Bom, entre altos e baixos de leucócitos e linfócitos, seu Espedito recebeu alta após quase três meses de internação. A equipe médica e a de enfermagem comemorou: descobri, no fim desses dias, que ele era mal-educado com todos; fazia gestos obscenos com os dedos das mãos, respondia mal os médicos, era mal-humorado. Engraçado, comigo ele era um anjo! Os filhos estavam presentes quando orientei a alta hospitalar, e estavam todos tão satisfeitos de levarem o pai pra casa. Era a reestruturação de uma família inteira, que havia prometido mundos e fundos a Deus e a todos os santos para que o pai saísse de lá bem; por isso, seu Espedito foi embora todo vestido de branco. Devem ter prometido uma tela nova pra Deus escrever um futuro melhor pra ele. Me agradeceu muito, encheu os olhos com lágrimas, mas não chorou. Seus olhos estavam mais ocupados brilhando com a ideia de voltar pra casa.
Por último, dona Joana, que vai completando 8 meses de internação. Depois de uma longa tragetória de dificuldades e intercorrências, entrou em cuidados paliativos. Eu a vi piorar drasticamente desde quando a admiti na enfermaria de cardiologia, encaminhada da UTI Coronariana, até hoje. Retornou à ventilação mecânica; precisou de novo das drogas vasoativas; iniciou antibioticoterapia de amplo espectro (completo!). Teve episódios de broncoespasmo, hipotensão, choque séptico. Haja corpo pra aguentar tudo isso, dona Joana! Essa semana, foi conversado com a família e optaram por cuidados paliativos... Dona Joana, que tanto nadou e que hoje vemos morrer na praia. Dizem que o caminho é mais importante que o destino, não é? Espero que tenha sido, dona Joana. A senhora parece ter sido tão ótima. Sinto muito que tenha que partir dessa forma, já tendo sofrido tanto. Uma pena que a dor seja algo tão primitivo, não mortal com a falta de oxigênio como a consciência. Torço pra que a senhora seja minha última alta, mas essa celestial. Gostaria que fosse em paz, com a sensação de que lutou com todas as forças pra permanecer em um mundo que nem é tão bom assim, eu conto pra senhora. E, juro pra senhora, não fique triste de não ter ninguém conhecido no quarto quando a senhora partir... Estão todos muito cansados... Assim como a senhora. Não significa que eles não a amem, porque eles amam e muito! É difícil deixá-la ir, mas sabem que é o melhor pra hoje. Distanásia não é uma opção pra nós, nem pra senhora. Peço pra que Deus te pegue no colo e te leve leve, sem pesos, sem sinais de um corpo que já entra em falência. E perdoa a gente, os médicos, os internos e residentes, se fomos nocivos pra senhora... A intenção era justamente o contrário. Prometo. Quero muito te ver bem, senhora! Fique bem. E vá em paz. Um abraço, fique com Deus.
Um abraço, cardiologia.
Fique com Deus.
Fique com Deus.
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