as duas faces.
No ambulatório, como de praxe, chamo o próximo paciente da lista.
O nome dele é o mesmo de um vizinho que tenho, que vi crescer e hoje tá um rapazola.
O rapaz que entra na minha sala também é um rapazola, afinal; ainda paira na segunda década de vida e não mostra nenhum indício de que sejam décadas finais. Além de jovem, durante a consulta sou informada de que a criatura tem uma rotina fiel de exercícios físicos, com uma dieta controlada e sem nenhuma comorbidade. Ao exame físico, exala uma saúde que não vejo há tempos, e que provavelmente nunca vislumbrei em mim mesma. Me conta, empolgado, da viagem que fez ao Peru, onde visitou lugares maravillhosos com uma vista esplendorosa; me conta, empolgado, como se confundiu com a língua dos vizinhos latinos tantas vezes; e me conta o quanto quer conhecer o resto do mundo. O rosto alegre, mucosas hidratadas e normocoradas; com o coração cheio, bulhas rítmicas e normofonéticas - porém batendo desesperadamente no compasso da animação que é experimentar novidades e um sopro de vida; os pulmões com murmúrio vesicular fisiológico, com fôlego pra enfrentar com o peito tudo o que vem aí pela vida; consciente e orientado, porém com delírios de quem sonha acordado, sem significado patológico. Não segue os critérios patognomônicos de um paciente, mas preenche critérios laboratoriais que mostram sorologia positiva para o HIV. Descobriu em um exame de rotina e nunca teve alguma doença relacionada à imunosupressão adquirida, pois trata religiosamente conforme já foi orientado.
O nome dele é o mesmo de um vizinho que tenho, que vi crescer e hoje tá um rapazola.
O rapaz que entra na minha sala também é um rapazola, afinal; ainda paira na segunda década de vida e não mostra nenhum indício de que sejam décadas finais. Além de jovem, durante a consulta sou informada de que a criatura tem uma rotina fiel de exercícios físicos, com uma dieta controlada e sem nenhuma comorbidade. Ao exame físico, exala uma saúde que não vejo há tempos, e que provavelmente nunca vislumbrei em mim mesma. Me conta, empolgado, da viagem que fez ao Peru, onde visitou lugares maravillhosos com uma vista esplendorosa; me conta, empolgado, como se confundiu com a língua dos vizinhos latinos tantas vezes; e me conta o quanto quer conhecer o resto do mundo. O rosto alegre, mucosas hidratadas e normocoradas; com o coração cheio, bulhas rítmicas e normofonéticas - porém batendo desesperadamente no compasso da animação que é experimentar novidades e um sopro de vida; os pulmões com murmúrio vesicular fisiológico, com fôlego pra enfrentar com o peito tudo o que vem aí pela vida; consciente e orientado, porém com delírios de quem sonha acordado, sem significado patológico. Não segue os critérios patognomônicos de um paciente, mas preenche critérios laboratoriais que mostram sorologia positiva para o HIV. Descobriu em um exame de rotina e nunca teve alguma doença relacionada à imunosupressão adquirida, pois trata religiosamente conforme já foi orientado.
Do outro lado, no pronto-socorro, abrem ficha com uma paciente de 42 anos com uma queixa de cegueira total e confusão mental.
Encontro-a prostrada em uma maca no corredor do hospital universitário. Seu nome é o mesmo de uma professora que tive que gostava muito de Chico Buarque. Não sei se essa moça também gosta do Chico, porque ela está com a mente vagueando por aí e não faz contato verbal comigo facilmente. Está extremamente emagrecida, caquética; eu me surpreendi, pois nunca havia visto tamanho consumo de uma pessoa sem que fosse em uma foto sobre crianças famintas africanas ou judeus à beira da morte em algum campo de concentração durante o holocausto. Não consigo aferir a pressão arterial da moça - vamos chamá-la de Margarida -, pois seu braço não tem espessura suficiente para caber meu aparelho. Está acompanhada pelo pai, que conta uma história de diagnóstico recente, com tratamento irregular e diversos episódios de doenças oportunistas, durante as quais perdeu a visão de um dos olhos, e agora a do outro olho, conseguiu algumas lesões cerebrais que dificultam seu contato com o mundo e sua habilidade de comunicação. O pai me conta o quanto ela estava bem recentemente, pois saía ao shopping pra tomar sorvete, gargalhava junto às irmãs e até passava esmalte nas unhas. E de repente, PUF, ficou ruim. Um mês depois, Margarida recebeu alta um pouco melhor, mas ainda com muitas marcas resultantes de uma infecção pelo HIV também identificada em exames laboratoriais de rotina. Porém, foi relutante ao tratamento. Uma vida difícil mais dificultada pelo estigma da doença que tem tratamento, mas que carrega uma sombra secreta que pesa os ombros de quem tenta esconde-la dos outros e, por vezes, de si mesmo.
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