zé ninguém.

Mesmo com o olhar cansado, as costas cedendo, os artelhos ardendo, me sinto na obrigação de registrar o ocorrido do último plantão noturno, do qual acabo de retornar. 

Eram quase 1h00 da madrugada, estávamos prestes a ir pro descanso. Chega, então, um indivíduo de 19 anos, trazido pelo corpo de bombeiros, com uma história simples e direta de "ferimento na cabeça". Tinha uma lesão no couro cabeludo, na região occipital direita, sem sangramentos ativos, mas que se assemelhava a um furo do papel feito por um prego ou uma caneta, partindo da parte inferior para a face anterior de uma folha imaginária. Abria-se como uma flor, um quebra-cabeça, com pedaços de tecido humano e de tecidos vegetais. Em antagonismo extremo, o rapaz recusava-se a se comunicar minimamente. O silêncio, com movimentos e gestos indicando revolta, recusa, resistência, era sua resposta a nossas perguntas: "O que aconteceu com você?", "Você tá sentindo dor?", "Tem algum outro machucado?". Suas respostas verbais, confusas e com o mesmo grau de conturbação, sugeriam que o mesmo estava sob o efeito de drogas ilícitas. Sobre mecanismo do trauma, ainda desconhecido, levantavam-se hipóteses compatíveis com alguma briga, na qual este saiu perdendo. 
O residente de cirurgia o abordou educadamente, com palavras macias que mostravam a sua disposição em ajudar. A resposta: aversão e muitos, muitos xingamentos. Ao sair da sala, porém, se mostrou disposto a fazê-lo "sofrer", imputando-lhe culpa e já estabelecendo o castigo para o crime. Se ele havia apanhado, e se mostrava tão revoltado, é evidentemente claro que havia culpa. Se havia culpa, havia crime. Se há crime, nada mais justo do que deixá-lo sofrer, oferecer-lhe um atendimento básico e sem firulas. Dá a ele o que ele pede, e deixe-o ir. 
Era perceptível que havia medo na sua fala. A agitação do rapaz indicava instabilidade. A perceptível alteração da consciência por substâncias indicava ausência de senso de realidade e, assim, perigo. 
Não nos deixou examinar o resto do seu corpo, como manda o protocolo. Praticamente negava o atendimento, excetuando-se quanto ao ferimento na cabeça. Vamos suturá-lo, então. A gente sutura e manda embora. 
Me dispus a tal tarefa. Fomos eu, o residente, outro interno (um rapaz maior, como que pra nos proteger, se fosse necessário) e uma estagiária. Passei, então, a confrontar o garoto, que não interrompia por nada suas reclamações, xingamentos e frases como "anda logo que quero ir embora pra minha casa". "Também quero ir pra minha.", respondia. "Já terminou?", "Eu disse que terminei? Fica quieto e para de me atrapalhar", eu dizia enquanto o mesmo se mexia e virava a cabeça pra olhar pras minhas mãos e ver o que eu fazia na sua cabeça. Apesar de estarem todos atentos, nos entendiamos nesse confronto de palavras. Sabia - esperava que soubesse, como demonstrava com minhas mãos vacilantes enquanto suturava - que não passariam do campo verbal. Se insistia em me perguntar coisas de forma rude, eu me recusava a responder, assim como havia feito conosco anteriormente. Então ele virava e mirava minha face, esta com uma testa franzida e com ar de poucos amigos, impaciente. Alternava as más respostas com orientações: "Fique quieto, agora você vai sentir uma picadinha só, é da anestesia. Quanto menos se mexer, menos vai doer", e ele me ouvia, aquietava-se. Ao residente com tom polido e macio de subordinação, o rapaz mandou-o sair da sala diversas vezes, não deixou com o que tocasse seu ombro com as mãos na hora de falar, nem o deixou se aproximar enquanto eu suturava. Mas me deixava mexer em sua cabeça, quando eu segurava firme seu couro cabeludo e dizia para se virar, prum lado e pro outro. Quando resistia às ordens, eu levantava minhas mãos e bufava, em tom impaciente, dizendo "Pois se quer ir embora, me deixa fazer meu trabalho. Fique quieto com a cabeça aqui". Na mesma matiz rude, ele ignorava quando eu dizia "Avisa se tiver sentindo dor, que a gente faz mais anestésico", e eu considerava seu silêncio como consentimento. Tudo correu bem, e no final ele disse "Quando eu chegar em casa eu vou tirar e vou lavar isso aqui tudo"; "É, lava mesmo, com água e sabão, todo dia, senão vai infeccionar e doer pra caramba."; "Vou lavar com sabonete Lux"; "Isso mesmo, tá ótimo". Terminei, fiz o melhor curativo que pude. 
Ficou deitado na maca. "Brigado, moça.", resmungou com o mesmo tom arrogante. "Vê se tem como  me dar um remédio pra essa dor que tô sentindo na perna, não esquece não". Fiz uma receita de dipirona, disponível na rede do SUS, de forma que ele pudesse pegar no postinho de saúde, e entreguei pra ele, que me escutou calado. "Valeu, tia". 

E foi embora, gritando uma música que nunca ouvi. 

Comentários

Postagens mais visitadas