O dia que acordei paciente - parte 1.
Às quatro horas da manhã abri os olhos e, acordada, percebi meu corpo ainda dormindo. Da metade dos meus seios até os pés, só dormência.
Logo vai passar.
Me sentei na cama, calcei a crocs com dificuldade, fui ao banheiro porque em 20 minutos eu pegaria o plantão de uma colega de trabalho difícil. Segue pro banheiro, vamos ver se melhora. Segurando nas paredes, pra não cair, as pernas meio bambas. Depois, saí do quarto me segurando onde era possível - inclusive na maca de um paciente que havia sido estacionada bem ao lado da porta do descanso médico. Ao tentar me firmar na maca, empurrei-a pro meio do corredor. Machucou, doutora?, Não, não, tá tudo bem, obrigada! Vou continuar segurando nas paredes. Boa noite, gente! - falei pra equipe da enfermagem que me encarava com várias interrogações pairando sob a cabeça deles. Bom dia, doutora. Ah é, bom dia!
Entrei cambaleando na sala da colega plantonista, que já estava com a zarabatana preparada pra me dizer algo de forma ríspida e seca. Me acusar de alguma coisa, como de praxe. Antes que ela pudesse terminar qualquer formulação de frase, Eu preciso de ajuda, Marcela. O que aconteceu? Senta aqui na cama, deita, vou te examinar. Começou perguntas rápidas sobre o que poderia estar causando tudo isso. Vou ligar no neurofone, e ligou, precisamos de uma ressonância de encéfalo, ele disse que não é AVC. Disso eu desconfiava, pensei. Mede a glicemia, tá 51, faz quarenta emeélis de glicose na veia. Vou pegar seu acesso, doutora, vou fazer com um 24, qual veia você prefere? Arde um pouco mesmo. Tadinho dos pacientes, penso. Vou fazer devagar pra não doer tanto. Vamos pra outra unidade pra ser avaliada pelo ortopedista! Então vamos, e fomos. Bota a doutora na cadeira de rodas. Consegue levantar? Claro que consigo, estou ótima, e assim quase caio de cara dentro da ambulância. Não vai sozinha, pode pedir ajuda.
Chegando lá, o plantonista da ortopedia me encontrou ainda meio atordoado de sono, eram 05h00 da madrugada. Me olhava enquanto perguntava do quadro, interrogando com as sombrancelhas, confuso, tentando encontrar algo familiar que trouxesse alívio ao homem cansado que havia se levantado pela chegada de um paciente. Deita, vou te examinar, levanta a perna, dobra, faz força. Vou palpar sua coluna, aqui dói? Não, não dói quando palpa, só dói. Olha, não é nada ortopédico não, isso daí é neurológico. Não é da minha área. Tudo bem, obrigada. Voltamos.
Nesse meio tempo, a colega tornou-se amistosa. Contava casos que ela mesma viveu de mal-estares durante plantões, os sufocos que passou entre crises de asma, de ansiedade e pré-síncopes vasovagais. Irreconhecível. Vai ficar tudo bem, deve ser estresse, a gente trabalha demais, né? A gente acha que tá tudo bem, mas nem sempre, burnout acontece demais.
Coleta exames. Todo mundo opinando, aparecendo médico até de debaixo da cama pra opinar no que poderia estar acontecendo. Eu já vi caso de ...., é mesmo, lembra daquela vez em que ....., lembro demais, já fizemos muito plantões assim, já colhi líquor duma paciente assim e assim. Você deve fazer isso e isso.
Pago pra fazer a ressonância da cabeça. Brinco com a técnica que está grávida. Entro no tubo pro exame, que faz milhões de tec tec tec e tok tok trééééem silêncio tá tá tá tá, 20 minutos assim - ou foi mais tempo?, acabou. Posso falar com o médico? Você é jovem, 23 anos e já formou? Olha aqui minha menina, ela também vai se formar com essa idade. Você tem ficado muito estressada? Sua coluna cervical tem uma lordose em vez de uma cifose, é sinal de extrema tensão muscular, vou até deixar anotado, mas a cabeça tá normal. Vai ser estresse, você vai ver, tenta trabalhar menos, viva mais. Tá bom, obrigada. Mais conselhos, será que eu deveria anotar?
No hospital universitário onde eu passei tanto tempo da minha vida, sou examinada inicialmente logo ao entrar na sala dos médicos, todos sentados em torno da mesa da clínica médica, internos, chefes, residentes, todos me examinando com os olhos curiosos e perguntando o que havia acontecido. Olha a ressonância. Tudo normal mesmo. Vou procurar um lugar pra te examinar. Arrumei a maca, vamos lá. Podemos ir? Os internos vão junto, pode? Claro que pode, 10 reais pra testarem meus reflexos.
Reflexos aumentados, clônus esgotável nos pés, sensibilidade dolorosa reduzida principalmente dos joelhos pra baixo, olha, tem nistagmo horizontal induzido! Sensibilidade térmica e vibratória normais. Vou discutir com o chefe, sou só R1, vão te examinar tudo de novo. Não teve nada mesmo, nada? Nada.
O chefe diz que preciso ficar internada pra investigarem meu quadro. Pode ser qualquer coisa, parece uma síndrome medular, pode ser compressiva, infecciosa, inflamatória, autoimune. Qualquer coisa. Pede exames, vamos ver se conseguimos fazer uma ressonância de neuroeixo.
Enquanto aguardava no saguão um leito pra ficar, passaram por lá muitos rostos conhecidos, tapados por máscaras. É a Letícia? Meu deus o que ela tá fazendo aqui? Vamos levar lá pro quarto. Maria, o que aconteceu? Conto a mesma história, duzentas vezes. Conseguiram um leito pra você na enfermaria, você vai subir. Tão rápido? Deve ser porque sou médica. Todo mundo sabe quem eu sou. Boatos nos corredores de que a médica não vai andar mais.
Eu consigo andar. Bem? Não. Sozinha? Ainda não. Mas sei andar.
Aí fiquei internada. Dois dias. Toda hora indo alguém furar meu dedo, aferir minha pressão, fazer uma dipirona porque as costas doem. Minha mãe veio, meu namorido ficou comigo também, os dois, a única paciente com dois acompanhantes, veja só o privilégio.
O dia todo sem comer aguardando me chamarem pro exame. Ih, foi cancelado - me avisam às 17h00. Ótimo. Só terça-feira. Quatro dias?? Sim. Posso esperar em casa? Vamos ver, vou ver com o chefe.
E se foi a cachorra que deitou nas minhas costas um dia antes de eu começar os sintomas? Ah, pouco provável, 26 casos relatados, coisa de surfista. Vamos devagar, você não é médica agora, é paciente. Pode ser muita coisa, desde esclerose a estresse. Vamos aguardar a ressonância.
Ninguém leva o paciente a sério!
Coletar o líquor. A interna pediu pra perguntar se você deixa ela tentar coletar. Não, deixa pra próxima. Lidocaína arde pra caramba, meu Deus do céu, isso foi só a anestesia?? Doeu menos agora, tá claro o líquor, já acabou. Fica deitada, pode dar cefaleia pós-punção.
Tudo normal. Bora pra casa.
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