O dia em que acordei paciente, parte 2.
Perdão pelo infame trocadilho, mas apesar de ter me tornado paciente, a paciência muito me faltou nesses períodos. Não que faltasse a ponto de escassez, na verdade, mas seu uso foi bem racionado entre necessidades bem distribuídas dentro das obrigações rotineiras do estado de ser uma paciente internada em um hospital para recuperação em saúde.
A última prioridade da minha paciência era para registros. Aliás, se estou escrevendo agora, não é por paciência, mas voltamos ao estado de necessidade. Pois o paciente precisa expressar, precisa colocar pra fora um pouco de tudo o que lhe foi imposto guela e vasos sanguíneos "abaixo".
Quando me tornei paciente, me tornei um recipiente aberto em um leito hospitalar.
Depositaram em mim algumas coisas interessantes, começando com as expectativas. Expectativas de ir embora, de melhorar, mesmo sem saber no início o que raios poderia estar acontecendo. A esperança de que tudo fosse passar e se transformar em um toque de mágica, que ora chamamos de ciência, medicina moderna, sabe se lá o que mais. Pode ser só placebo, apesar da quantidade de estudos científicos refutando essa minha última afirmação. Mas não ligo.
Depois, depositaram em mim as expectativas deles. Conforme sua experiência, depositaram em mim a expectativa de uma enfermidade que acham conhecer, acham saber manejar, mas na verdade pouco sabem do que realmente ocorreu. Sabem que está chovendo, que a água veio de algum lugar e que um guarda-chuva será uma conduta adequada - mas não se sabe porque começou a chover, de onde exatamente veio a água e acabaram de descobrir que eu poderia chover. Assim, espera-se que o guarda-chuva segure as consequências e os resultados danosos que o aguaceiro pode causar nessa pessoa que nunca choveu antes. E eu abraço essas mesmas expectativas com esperanças redobradas.
Depois disso, depositaram em mim a necessidade de paciência. Ali eu já era paciente, naquele outro sentido da palavra, mas reconheci novamente aquele padrão da medicina de esta nada mais é do que repetições contínuas em espiral das mesmas coisas sempre, nos permitindo assimilá-las de vários ângulos novos a cada momento. Aplica-se ao ser paciente. Paciente, expectativas minhas, alheias, esperanças minhas e esperanças alheias, paciência minha e paciência dos outros. Paciência porque temos uma medicina moderna cujo catalizador único e sempre esperado é o tempo - ou a falta dele. Com sorte, o tempo catalizará a minha melhora, fará com que o meu corpo volte a ser o que já foi ou algo muito parecido com isso. Já dizia aquele moço filósofo - antes dos filósofos serem realmente filósofos - que nunca nos banhamos nas mesmas águas de um rio. Assim, a paciência do paciente é de se tornar algo melhor do que ele o é no momento em que está sendo paciente - qualquer coisa melhor que isso já é vantagem e cura, é aceitável de braços abertos e muita alegria no rosto. A mais vã das expectativas pode ser voltar ao que já se foi, mas é impossível, quando refletimos direito. Entretanto, como já contei, a paciência do paciente é muito racionada e nem sempre refletimos direito, o que pode nos levar a pequenas frustrações futuras. Faz parte. Né?
Bom, nunca se é paciente sozinho.
Existem os profissionais de saúde, os trabalhadores do hospital.
O estágiário que trabalha em vários locais, em várias cidades, mas que ainda tem dificuldade de puncionar um acesso venoso rapidamente e de forma indolor. Os pacientes não tem paciência com ele, nem eu.
Os técnicos de enfermagem antigos da casa, que me conheceram quando eu ainda era estudante de medicina, e que deduzem que eu sei coisas que eu nem sabia - como o fato de não poder me levantar para ir ao banheiro durante a pulsoterapia, pelo risco de "passar mal". Me explicaram com paciência, escutei solenemente, mas depois me desbancaram falando minha profissão e supondo que eu tinha conhecimentos que eu nunca tive. Não desmenti, deixe-os superestimando meus saberes, não faz mal por ora.
Os maqueiros, simpáticos transportadores de pessoas prum lado e pro outro, num leva e traz de doentes e sadios alternando entre macas e cadeiras de rodas. São como aquele barqueiro que pode levar as almas ao Hades ou trazê-las de volta pra superfície, num erro vão e vil de iniciante que levou pro lado errado sem perceber. Perguntam sobre quem você é, o que faz, e ali mesmo compartilham sua existência brevemente com você, como que pra te lembrar da vida fora do hospital. Lembrar a você e a ele que ali há duas pessoas comuns, andando dum lugar pro outro. Só isso.
Os residentes, que ora ou outra me reconheciam e diziam ué, o que você tá fazendo aqui?
Os acompanhantes, familiares, amigos, colegas de trabalho - querendo saber tudo tim-tim por tim-tim: como foi, o que está acontecendo, como está tudo ocorrendo, como se sente, como se sentia, como vai ser depois? Dúvidas que compartilho no meu íntimo, mas ajo como se soubesse de algo pra abreviar o contato agonizante das duas incertezas no ar supostamente contaminado daquele quarto de hospital.
Os outros pacientes, colegas de quarto, todos mais graves do que eu, lutando dia após o outro por mais um dia para lutar. É purificação artificial de sangue, é receber sangue novo, antibiótico, fisioterapia, nutrição, fonoaudiólogo, psicólogo, assistente social, familiares, enfermeiros, técnicos, é mais remédio, é dispositivo pra comer, urinar, defecar, fazer respirar e fazer sair catarro. Tudo precisa de ajuda pra entrar e pra sair, geralmente. É um trabalho pior que um parto - bote pior nisso, pra tentar manter uma pessoa viva e funcionando, quando parece que as coisas estão de mal a pior.
Não sabemos ao certo porque as coisas acontecem com as pessoas, mas tentamos consertar de todo jeito possível, juntamos um monte de pessoas que podem contribuir nesse processo e só vamos. É isso que meu trabalho faz. Empurra uma pessoa de volta pra vida e tenta convencê-la de que isso é o melhor a ser feito - geralmente é, depende da perspectiva, como sempre. No fim costuma dar certo. Quando não dá, sabemos que esse era o desfecho mais adequado pra situação - a vida não nos faz perder tempo. Ela sabe a hora certa de ir embora da gente e de fazermos parar de segurá-la quando é tempo de partir.
Perspectivas.
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