O dia em que acordei paciente, parte 3.

 Existe um clássico livro russo, de Leon Tolstói, sobre um homem de certa importância política russa que sofre um acidente doméstico e fica doente. A história é sobre esse homem com essa doença, este chama-se Ivan Ilich, a doença não se apresenta com nome certo. Por vezes, vimos as mazelas psicológicas de Ivan durante seu processo degradante de doença - de honroso nada há. É basicamente tudo se desfazendo ao seu redor - sua saúde, seu prestígio, suas relações familiares, até que resta apenas seu sofrimento sendo remoído repetidamente. Nada resta, no fim, além da morte sofrida desse homem, por isso o livro se chama A Morte de Ivan Ilich, e não A Doença de Ivan Ilich. A doença levou tudo desse homem.

Em certa altura do livro, Ivan Ilich conta sobre a sua vontade secreta de ser tratado tal qual uma criança. 

momento havia, depois de demorados sofrimentos, em que queria, acima de tudo, por mais que se envergonhasse de confessá-lo, ver-se tratado como se fosse uma criança doente. Queria ser acarinhado, mimado, beijado, tal com se faz com as crianças. Sabia que era um juiz importante, dono de uma barba já grisalha e que por isso mesmo o que ambicionava era impossível, mas ainda assim ambicionava. E no comportamento de Guerássim para com ele havia qualquer coisa próxima daquilo que queria e de tal forma sentia-se um pouco confortado. (Tolstói, 2008, p.74)

O trecho geralmente é colocado integralmente em vários artigos médicos sobre o tema abordado pelo livro, pois isso a facilidade de encontrá-lo. É um sentimento universal de quem já ficou doente, acredito eu, com a vasta experiência de ter ficado doente algumas vezes na vida e ter lido esse livro com seus inúmeros momentos de debate outras tantas vezes. 

Pensei nas possíveis razões de revivermos esse desejo infantil de ser cuidado. Acredito que o problema - sempre tem um problema nessas coisas - é chamarmos de infantil uma necessidade humana de afeto. Sabe-se (eu sei que alguém sabe, mas não sei quem soube primeiro nem mais quem me contou) da importância do afeto e do carinho, da sociabilidade, no crescimento dos bebês primatas e nos bebês humanos, bem como temos registrado demais a absurda necessidade de cuidado dos filhotes humanos em comparação com as outras raças de animais mamíferos. Somos um monte de carne descoordenados até que em certo momento nos declaram coordenados suficientemente para gerar mais montes de carnes descoordenados, e por aí vai. Nesse processo, precisamos uns dos outros - as descoordenações alheias aliviam as nossas, umas se complementam, outras se ajustam e assim crescemos, desenvolvemos, pra depois morrermos em paz, se com sorte. Bem, a questão principal aqui é que dado que estamos descoordenados na doença, bem como no nosso desenvolvimento, precisamos dos outros pra esse ajuste e complementação para nos restabelecermos e crescermos, nos vermos livres novamente pra sermos esse ajuste e complemento de outras pessoas descoordenadas que ora cruzam nosso caminho.

Quando a autonomia vai embora, precisamos de um modelo de autonomia próximo para nos emprestá-la por um breve período, só pra gente não se desacostumar. E ser cuidado é isso. Cuidar é isso também - emprestar um pouco do que falta no outro, até que esse tenha novamente o que lhe acabou ou lhe é deficiente. Seja cuidado, seja força, seja saúde. Seja lá de onde tiramos isso. 

Faz sentido? Pra mim fez. 

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