Bomba de ar.

 Deixar uma história correr pelo mundo, seja em letras escrita ou contadas, eterniza os seus personagens. E dentre os personagens eternizáveis dessa vida, descrevo algumas memórias. 


Seu João Batista fumou a vida toda - começou aos sete anos e continuou até os oitenta e oito. Não sei qual foi a dinâmica familiar de outrora, mas hoje era honestamente confusa - havia filhos preocupados, sim, mas preocupados em mante-lo vivo a qualquer custo. E foi com essa intenção que seu João foi parar na unidade de emergência à beira da morte: pele fria, pegajosa, sem respirar, coração batendo fraquinho como que em fim de música anunciando o término da canção. "Não sabemos o que aconteceu com ele, achamos ele assim em casa e trouxemos!" foi a frase solta no desespero do momento. E por manobras que não foram apenas da ciência, seu João decidiu viver por mais um tempo. Como? Os médicos não faziam ideia. 


Permaneceu internado em um quarto isolado, onde o mantinham para descobrir a causa da sua quase morte. Era fato consumado que o mesmo não se encontrava no auge de sua saúde há tempos, mas havia semanas - uma, duas, quem sabe? - que acordava à noite e não dormia mais; que de súbito faltava-lhe o ar, seu rosto se avermelhada até arroxear e fazia um trinado com a garganta como de quem se sufoca na própria saliva; que caía pela casa, durante o trajeto para outro cômodo, e se esborrachava nos móveis criando grandes hematomas nos membros e no rosto. Na última queda, machucara os lábios e mordera a língua. Havia quase uma semana, mas ainda sangrava. Doía. Cheirava mal. E incomodava. 


Não sabia o que tinha acontecido e estava muito zangado com os filhos por o terem deixado internado no hospital. "Eu estava bem em casa, tudo certo, não preciso ficar internado, ele dizia. Eu tenho esses problemas com o ar desde muito tempo, doutora. A  bombinha resolve. Não tá na hora de usar a bombinha de novo não? Acho que tá na hora de usar a bombinha." Nunca estava na hora. "Ele tá viciado na bombinha, doutora", diziam os cuidadores. E pode alguém não ficar viciado em respirar? 


Um dia fui chamada pra avaliá-lo na madrugada pois estava agitado, inquieto. Encontrei-o coberto com o lençol e as mãos fechadas sobre a barriga, escondendo algo da vista. Um segredo só dele. O rosto assustado, vermelho vinhoso, exasperado, trinando. O coração acelerado como numa corrida sem preparo. Puxava o ar com a ajuda da barriga, dos braços, dos ombros, do corpo todo, mas o ar não lhe obedecia. Feitas as medicações e com a volta do ar aos pulmões dilatados, o segredo foi revelado. Estava usando a bombinha de asma escondido - e descarregara o frasco completo na boca durante o período de desespero, sem obter sucesso. Haja coração.

 

"Doutora, seu João não tá comendo esses dias. Não bebe água, está desidratado." Fui vê-lo no quarto da esquina da enfermaria, sozinho, apenas com a presença de vários profissionais passando em frente sua porta o cumprimentando. "Aceita um pouco de água, seu João? Eu ajudo o senhor.", "Quero sim, doutora.", "Pois tome, eu seguro seu copo". Os lábios rachados e a língua ainda sangrante estavam desérticos. O copo de plástico foi cedendo à força da sede do homem, as mãos trementes com uma altíssima amplitude quiseram segurar o copo. Três mãos para um copo, e dois goles para sua sede. E me disseram que ele não colocou mais nada na boca depois dessa noite.


Mudaram seu João de quarto, chamaram um dos filhos para o acompanhar. "Nada de COVID-19, seu João, mas precisamos cuidar dessa infecção no pulmão do senhor." Ele não respondia mais. Olhava além de todos, não com um olhar perdido, mas muito encontrado, de quem sabe o rumo que vai tomar em breve. "Seu João está apático, doutora, e os rins estão falhando." Seu João não pedia mais pela bombinha - a falta de fôlego sucumbiu à tosse, agora ininterrupta e paroxística. Vomitava o que não comia. Não urinava mais. Não bebia mais. 


No meio da noite, descobrimos que ele também não respirava. 

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