Rendilhados.

 Discorro sobre o luto a partir de dados empíricos.

Não de forma surpreendente - afinal, estamos vivendo uma das pandemias do século -, é minha segunda vivência de luto em menos de 2 anos. As perdas não tiveram relação com a doença respiratória em voga, o que pode trazer um alívio discreto em relação ao meu papel de influenciadora nos estados de saúde das pessoas que se foram, mas não suficiente. Foram 2 anos de proteção contra uma causa mortis, com sucesso, apesar de agora serem tão dolorosos as ausências de contato físico, as conversas sem máscara, a vivência próxima como de quem não tem receio de transmitir um vírus potencialmente letal a quem tanto amamos. 

Luto - é a nomeação externa do sentimento que é mais interno do que eu gostaria, a nível visceral, como se eu sentisse nos ossos, na medula óssea, no núcleo das células mais profundas do meu corpo físico. Se eu soubesse as subdivisões do meu eu metafísico, também diria que está nas entranhas mais escuras, onde a minha consciência ainda não ousou ligar a luz. 

Confesso ter vivido muitos lutos alheios, através do que eu chamo de contaminação. Como em uma doença, a contaminação ocorreu pelo contato próximo e íntimo, por vezes prolongado, por vezes nem tanto. A culpa maior dessas contaminação, penso eu, é daqueles neurônios espelho que mimetizam aspectos do outro em mim mesma. A culpa maior é do mecanismo de empatia - tão querido e tão doído - que hipertrofiou contra a minha vontade durante os dias difíceis onde tantos partiam independente do meu esforço. Maldita empatia que me faz sentir dores físicas com a perda dos outros, com o luto alheio. Maldita empatia que me faz chorar de desespero, com uma ínfima parte do que uma mãe sente ao perder seu filho ainda tão jovem - a dor que mais vivenciei nos últimos tempos. 

Longe de ser exclusiva e com a plena consciência da minha insistência em um dos temas mais ouvidos nos últimos 2 anos, sinto a necessidade de falar sobre meu luto. As sessões de terapia tem sido curtas pra externalizar a dor da falta. Seria essa a dor do membro fantasma? 

A perda vai deixando espaços vazios na minha alma, a qual já se acostuma com a ideia de ser rendilhada, com espaços que formam a trama definitiva. Sorte de quem tem a alma como um tecido grosso e com a trama bem fechada. Pela minha, é possível ver seu interior e suas tentativas de tornar os espaços, as lacunas deixadas, como parte constituinte de si mesma. 
Seria prudente do metabolismo das almas a presença de células responsáveis por preencher os espaços que ficam depois da limpeza de tecido necrótico decorrente dos danos causados pelo mundo (externo e interno) - faltam os oligodendrócitos da alma. Por ora, porém, aceito meu tecido rendilhado, torcendo pra que ao menos a trama se torne bonita aos olhos de quem tem a infelicidade de encará-la de frente. 

As lacunas são como gritos surdos ecoando no abismo. Tais gritos são a concretização do desamparo, do medo, da solidão que vai se tornando cada vez mais amiga e mais presente contra a minha vontade. São gritos surdos que não escutam a si mesmo por proteção - se quem grita ouvisse tais sons, talvez se surpreendesse vislumbrando o timbre e o volume que estes tomam ao sair do aparelho fonador. A autoconsciência da dor contida nos gritos é evitada por precaução. Há dor suficiente pra geração dos gritos, não requer mais um mecanismo de retroalimentação. São gritos que são mudos fora do meu abismo - afinal, tenho grande apreço pelos que me rodeiam e tenho consciência de que estes também tem seus gritos a serem ecoados em seus abismos particulares. Não me cabe compartilhá-los, pois a dissipação do som pode tornar as coisas um pouco melhores e a culpa que ainda persiste não permite que as coisas sejam mais fáceis. 

A esperança é que a renda saia logo de moda. 











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