Transmissão por estágios.
Atendi Clara numa consulta ambulatorial, logo depois da mãe.
A mãe, Renata, entrou sozinha. Ambulatório de infectologia, a grande especialidade das doenças infectocontagiosas, uma das primeiras a existirem, hoje renegadas às populações vulneráveis, segundo a crença comum. [Mal sabem eles que as doenças circulam por todos os círculos e triângulos e cubículos de todas as formas de ser e de fazer, levando o mal sem olhar a quem.]
Pois bem, Renata já estava com seus 50 e poucos anos, assim como minha mãe. O rosto ainda jovem, o ânimo ainda presente, algumas marcas do tempo decorando as frases curtas com tom de satisfação.
- Vim só checar o exame de rotina, doutora. A doença tá controlada, a senhora vai ver. Tomo meus remédios, acompanho nas consultas, não perco uma! Até hoje, nada, graças a Deus, e vai continuar assim.
Chequei os exames e dona Renata estava certa.
Doença sob controle. Carga viral indetectável há anos. Boa tolerância à medicação, sem maiores danos. Mais uma receita, mais um retorno em alguns meses pra nova checagem.
Alívio.
- Então, doutora, que coisa boa. Sabe, eu peguei isso foi do meu ex-marido. Fui viúva cedo, me casei de novo e esse homem que chegou me deu canseira. Judiou de mim, fez de mim o que quis. Pela benção de Deus foi embora um dia pra trabalhar e não voltou mais. Mas largou essa doença aí. Não gosto nem de lembrar o nome.
- E tiveram filhos, dona Renata?
- Graças a Deus eu já era ligada, tive um parto complicado da minha menina Clara [ligada era a forma de dizer que já tinha realizado ligadura tubária, um método irreversível de contracepção feminina]. Aliás, Clara também tem consulta marcada pra hoje, veio encaminhada por conta de alguns exames que ela fez lá no serviço dela.
Não tinha preocupação nenhuma no rosto da dona Renata. Alegre estava porque a filha tinha um emprego e havia viajado com ela pra consulta - uma oportunidade pra se atualizarem da vida uma da outra.
-Tudo certo. A senhora então espera lá fora que eu já vou atender a Clara. Quando terminarmos, chamo a senhora.
E Clara entrou.
Foi uma primeira consulta longa, como de praxe, principalmente se tratando de infectologia. Passado de imunização, transfusões sanguíneas, cirurgias, exames sorológicos prévios, empregos, exposições a riscos biológicos, histórico familiar, tudo. A mãe tinha se infectado após o nascimento dela, então era uma preocupação a menos. Porém, compartilhavam materiais de manicure. Um risco extra, considerando o vírus da hepatite C, por exemplo.
Clara me contou que trabalhava na área da saúde há cerca de 2 anos. A pandemia estava no seu auge quando começou a trabalhar no posto de saúde da cidade, como técnica de enfermagem, tendo participado de grande parte da imunização contra COVID-19 do município onde vivia, no interior de Minas Gerais. Se lembrava, no entanto, de um acidente biológico com uma agulha de um paciente, cujos exames sorológicos eram negativos na ocasião. Foi orientada de que não era necessário coletar exames, uma vez que os exames do paciente eram negativos. "Em períodos de escassez como durante a pandemia, era melhor poupar recursos", foi o que alegaram na coordenação do posto de saúde.
Clara não se lembrava de ter feito exames em algum momento na admissão no novo trabalho. Mas trouxe à consulta dois exames positivos para a mesma doença que a mãe tinha controlada. Um médico novo tinha chegado na cidade e, após reuniões com a direção do local de trabalho, foram coletados os exames periódicos de todos os funcionários. Alguns dias depois, esse médico a chamou no particular para falar sobre o resultado de alguns dos exames, solicitar outros para confirmação, enquanto já encaminhava para este serviço onde estávamos, que é referência na região.
Estava assustada. Estava noiva e tinha medo de que o futuro esposo pudesse ter sido contaminado, apesar de nunca terem tido relações sexuais. Temia também o que poderia ser do relacionamento dela depois dessa consulta. A vida toda de cabeça pra baixo.
Então conversamos: expliquei da doença, o mecanismo de contágio, a ação no corpo, como funcionavam as medicações de tratamento, como era o plano a partir dali. Clara parecia nervosa ao pensar onde havia se contaminado - a pandemia já tinha sido tão traumatizante... Depois da conversa, se tranquilizou um pouco, e combinei com ela de ir discutir seu caso com o chefe do serviço. Ela iria chamar a mãe para acompanhá-la durante essa espera, mas não queria que a mãe soubesse de nada por enquanto.
Eu ia saindo da sala, o coração apertado pela história da Clara. Negligência com o profissional de saúde em tempos de pandemia, como pode uma coisa dessas? Será que ninguém havia orientado sobre a necessidade de coletar os exames diante de um acidente biológico? Ninguém tinha coletado um exame admissional com as sorologias? Eu tinha dúvidas e sabia que precisava rever várias normas a respeito disso, pra saber se minha indignação tinha fundamento real. A cabeça cheia, trabalhando a mil, fosforilando: quando foi essa contaminação? Será que realmente durante o trabalho na pandemia? Será que pelo contato com pertences íntimos da mãe, contato com sangue via materiais de manicure...?
- Ah, doutora...?
Pensamentos bruscamente interrompidos, passos rápidos pausados. Girei de volta pra Clara.
- Eu acho que pode ser importante, a senhora me diz se é. - Hesitou Clara. Achei melhor voltar e sentar ao lado dela, pra que pudesse falar com calma.
- Eu fui abusada enquanto eu era criança. - pausa. - Pelo ex-marido da minha mãe. Será que pode ter sido ele também?
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